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Aroldo Nascimento Silva
aroldo.silva@ufpr.br
Universidade Federal do Paraná / Campus avançado de Jandaia do Sul
Orcid: 0000-0003-3493-6336
Marcelo Valério
marcelovalerio@ufpr.br
Universidade Federal do Paraná / Departamento de Teoria e Prática de Ensino
Orcid: 0000-0003-2107-6023
DA PONTE PRA CÁ: DIVULGANDO A CIÊNCIA COM ESTRATÉGIAS
QUE A QUEBRADA ME ENSINOU
FROM THE BRIDGE TO HERE: SPREADING SCIENCE WITH
STRATEGIES THAT QUEBRADA TAUGHT ME
Resumo
Divulgação científica não é uma atividade que se realiza apenas a partir da perspectiva acadêmica, que se permita
limitada por suas linguagens, discursos e espaços físicos. Quando se permite marcada pelas culturas e públicos das
quebradas, territorializada, portanto, a divulgação científica se reinventa em seus fundamentos e práticas. Estas
são as premissas da palestra que o biólogo, educador, podcaster e ilustrador, Lucas Andrade apresentou na abertura
do VI Simpósio das Licenciaturas em Ciências Exatas e em Computação, da UFPR. Neste texto, dois membros da
organização do evento resgatam estes fundamentos em uma entrevista com o ministrante, aproveitando os
conhecimentos e a experiência do Lukera, membro fundador podcast Alô, Ciência?, para compartilhar com a
comunidade as melhores estratégias para uma divulgação científica que efetivamente constroi pontes! De modo
exemplar, cientistas, comunicadores, artistas, público em geral e estudantes podem conhecer e se inspirar com a
atuação do entrevistado, com suas parcerias, com a elaboração de sua identidade profissional, com sua trajetória
até a Universidade e com a importância da Extensão Universitária para sua permanência na graduação.
Palavras-chave: Comunicação e divulgação científica. Extensão universitária. Trajetória de vida.
Abstract
Scientific dissemination is not an activity that is carried out only from an academic perspective, allowing itself to
be limited by its languages, discourses and physical spaces. When allowed to be marked by the cultures and
audiences of the Quebradas, therefore territorialized, scientific dissemination reinvents itself in its foundations and
practices. These are the premises of the lecture that biologist, educator, podcaster and illustrator, Lucas Andrade
presented at the opening of the VI Symposium of University Courses in Exact Sciences and Computing, at the
UFPR. In this text, two members of the event’s organization highlight these tenets in an interview with the speaker,
maximizing the knowledge and experience of Lukera, founding member of the podcast Alô, Ciência? (Hello,
Science?), to share with the community the best strategies for scientific dissemination that effectively builds
bridges! In an exemplary way, scientists, communicators, artists, the general public and students can learn about
and be inspired by the interviewee's performance, his partnerships, the development of his professional identity,
his trajectory to the University and the importance of Extension University for his undergraduate period.
Keywords: Communication and scientific dissemination. University Extension. Life trajectory.
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Prólogo: por uma divulgação científica não academicista
A divulgação científica é tradicional e costumeiramente feita por cientistas, jornalistas,
comunicadores, estudantes universitários e artistas em um contexto acadêmico e de cultura de
massas. Ainda hoje, não se trata de uma atividade periférica, no que diz respeito a recortes
sociais de cor, gênero e perfil econômico.
Em um país desigual como o Brasil, os veículos e espaços por onde circula o
conhecimento científico não são efetivamente populares. Aparatos culturais como cinema,
teatro ou literatura estão distantes das classes menos abastadas. E dispositivos como museus,
centros de cultura, praças, parques e jardins estão mal distribuídos e carecem de uma “cultura
de (oportunidade de) consumo” pela população. Assim, a divulgação que mais alcança as
massas chega pelas redes sociais, sovada de interesses corporativos e disputando espaço com
outros milhares de temas mais ou menos cativantes.
Mas, felizmente, como segue acontecendo com as estruturas das instituições
universitárias, com as matrizes curriculares dos cursos de graduação, com formação dos
professores que lecionam no ensino superior, também a popularização da ciência está sendo
transformada pela chegada, permanência e pelo protagonismo de um novo perfil de estudante:
pretos, pobres, vindos de escolas públicas, com trajetórias periféricas, e, muitas vezes, os
primeiros de suas famílias e vizinhanças a se relacionarem diretamente com este mundo que
lhes fora negado. Esta gente quer, sabe e vai fazer divulgação científica com e para os seus, a
partir de sua perspectiva, em seus territórios, com as suas marcas identitárias.
Foi por isso que convidamos Lucas Andrade, o Lukera, do podcast Alô, Ciência?, para
abrir o VI SLEC, o Simpósio das Licenciaturas em Ciências Exatas e em Computação, da
UFPR. Lukera é um divulgador da ciência periférico. E ele tem tanto a ensinar quanto qualquer
comunicador, jornalista ou pesquisador da divulgação científica que fale a partir da academia.
Para a nossa gente da quebrada, ele é exemplo e inspiração. Para os que não haviam se dado
conta do significado desse fenômeno, ele é reflexão e possibilidade de mudança.
A Entrevista
A trajetória até a universidade e a percepção da importância da educação e da divulgação
científica
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Autores: No início da palestra, você trouxe um pouco da sua trajetória de vida, o seu caminho
até a Universidade, algumas dificuldades e a sua relação com o estudo. Resgate um pouco da
sua fala aqui para nós.
Lucas Andrade: A minha relação com o estudo, com o conhecimento, foi como uma porta
fechada. Então, eu sempre desejei muito aprender, sempre fui uma criança muito curiosa.
Entretanto, me via impedido por vários motivos, principalmente por não ter uma estrutura. Uma
escola boa.
A escola que eu estudava além de, como muitas das escolas públicas de São Paulo, ser precária,
era uma escola pública de periferia. E aí tem a questão da precariedade e da violência dentro da
escola. Então, essas coisas me faziam ter uma relação de medo, de um lugar que eu não me
sentia à vontade. Um lugar que torcia para acabar o mais rápido possível.
Eu não gostava da escola até os meus onze, doze anos de idade, mas sempre adorei o
conhecimento. A minha mãe deixava uma prateleira de livros na sala. Ela sempre gostou muito
de livros. Acho que isso foi me deixando cada vez mais instigado a querer estudar, pela coisa
silenciosa de ter uma prateleira cheia de livros em casa. Isso nunca faltou.
Pulando para a época que queria fazer cursinho, eu estava trabalhando e estudando ao mesmo
tempo, no terceiro ano do ensino médio. Resolvi entrar no cursinho pela paixão por aprender.
Por querer aprender, e não necessariamente para passar no vestibular, porque não via essa
possibilidade. É muito louco. Eu entrei lá sem esse sonho de entrar na USP.
Quando entrei no cursinho, entendi que poderia. Mas, ao mesmo tempo, descobri o quão
defasado estava para poder participar da corrida por essa vaga. Então, a minha relação com o
conhecimento sempre foi, - como se diz? - Uma coisa que tem dois sabores, agridoce. Tinha
algo bom, mas tinham muitos impedimentos que estavam acontecendo para acessar esse
conhecimento, algo que me frustrava, deixava triste.
No terceiro ano de cursinho... Sim, fiz três anos de cursinho! Hoje entendo que, passei por
algum episódio de ansiedade ou depressão. Não sei explicar o que foi, mas fiquei um mês
“paralisado”, sem fazer mais nada. Mal conseguia comer. Quando comia sentia ânsia. Acordava
assustado e aí depois [de um tempo] percebi, poxa, estava há três anos em busca de um objetivo
que nem sabia se de fato ia acontecer. Possivelmente poderia se estender por quatro ou até cinco
anos.
Não sabia nada da minha vida, estava fazendo vinte e um anos e me sentia atrasado, sabe?
Enfim, foi assim. Hoje a gente entende. Depois que a gente passa, ? É isso, minha relação
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com o conhecimento. Ao mesmo tempo, foi a coisa que me libertou. Faria tudo de novo! É essa
paixão que me permitiu conhecer pessoas incríveis para serem meus aliados, pessoas que têm
o mesmo background. [Pessoas com o] mesmo pano de fundo, [que] vieram de quebrada e
queriam aprender. Querer ser antes de ter. Querer aprender tudo sobre o mundo, mesmo que
isso signifique... não ganhar bem, não ter uma carreira estável. Então, me alinhei com pessoas
assim e me tornei forte.
Autores: Lucas, pensando em outro contexto, no caso, a Universidade. Temos muitos
estudantes que, por diferentes motivos, desistem do curso, por exemplo, por questões
econômicas. O que, no seu caso, te fez persistir, não desistir? Você podia pensar, nossa, já são
três anos! Isso aqui não está dando certo.
Lucas Andrade: O que não me levou a desistir? Cara, foi teimosia. E ter teimosos comigo
(risos)! Lembro de um amigo meu, inclusive, desenhei ele em um dos slides [da palestra]. Ele
era carteiro, queria fazer Biologia também e fez quatro anos de cursinho. Era muito
determinado. E aí, nós, juntos, tínhamos essa determinação. Creio que é a partir desse momento
que a determinação virou um pano de fundo normal para todos. Mano, a gente vai conseguir
isso, nem que demore dez anos! Nós vamos conseguir. Essa teimosia coletiva foi alimentada
por pessoas que queriam uma condição melhor de vida, que desejavam entender melhor o
mundo. Curiosidade, talvez? Não sei muito bem de onde tirei essa força, mas acredito que foi
dessas pessoas que conheci no cursinho, principalmente, entre meus iguais.
Autores: Como você vê, na atualidade, apesar dos inúmeros problemas que o país atravessou,
sobretudo nos últimos quatro anos, esse movimento de acesso ao Ensino Superior? Pessoas com
origens semelhantes à sua, filhos da classe trabalhadora chegando à Universidade.
Lucas Andrade: Olha, vejo com bons olhos, sobretudo em relação à minha época. Entrei em
2012 na Universidade, era outro [contexto]. De lá para cá vejo que muitas políticas afirmativas
[se consolidaram], muitas cotas vieram. Primeiramente, pelas federais. Antes mesmo da USP,
que é considerada uma das maiores da América Latina, e chegou muito atrasada nisso. E teve
os ganhos do SISU e o ENEM melhorou. Com o ENEM para vo entrar em outras
universidades fazendo ele, sem ter que pagar outros vestibulares. Esse sonho está mais
comum entre as pessoas. Acho que é mais palpável. É provável que você encontre alguém da
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sua rua, sendo de quebrada como você e que fez graduação, que está fazendo graduação, que
está em uma Universidade pública. Então, na minha época, eu não conhecia ninguém [que
estava em uma Universidade pública]. meus professores do cursinho. Então, [atualmente]
temos mais exemplos. Têm mais políticas públicas que favorecem a entrada. A gente
consegue ver as mudanças que essas pessoas, que ingressaram por cotas, por políticas
afirmativas, a mudança que elas estão fazendo dentro das universidades. Vejo inclusive, pessoas
graduandas que estão lutando por políticas afirmativas na Pós-Graduação. Vi acontecer em
2020, mesmo durante a pandemia, houve pessoas negras se juntando na Biologia por cotas na
Pós da Ecologia da USP, especificamente. Essas pessoas também estão mudando o modo de se
fazer ciência.
O que a ciência usa como objeto de estudo? Vejo pessoas que estão, por exemplo, na área de
humanas... Ontem, estava participando de um evento no Sesc sobre cultura nerd e conheci um
cara que pesquisa a cultura negra dentro de quadrinhos. Fico pensando, quem pararia para
estudar isso se não uma pessoa preta de quebrada! Uma pessoa que acessou a Universidade e
que voltou para cá [sua comunidade] para falar sobre isso, para instigar os moleques que estão
passando por ali de bobeira no Sesc e que existe uma carreira científica, que também pode ser
seguida e que existe todo um cenário acontecendo, que precisa ser estudado.
Vejo a Biologia com o “mais no chão”, principalmente por parte dessas pessoas, de
pesquisadores que vieram de quebrada, minorias. Vejo pessoas fazendo pesquisa que tem a ver
não com as biológicas, mas com a questão sociocultural daquela região. Vejo pessoas
trabalhando sobre degradação ambiental, mas também levando em consideração a cultura e a
economia dentro disso.
E como inserir a Educação e engajar as pessoas nesse processo? Porque, por exemplo,
conservação é uma coisa que você não faz simplesmente botando uma grade ao redor de uma
floresta e falando, sai e está conservado. Porque na verdade, isso se chama preservação! Então,
conservar precisa levar em consideração a sociedade. Vejo pessoas fazendo mais isso.
E mais um ponto, no começo da minha palestra falei que participei da Estação Biologia
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, que é
um espaço de educação, onde os graduandos têm um primeiro contato com a educação não
formal e, desde a minha época, a maioria dos monitores que participam do projeto são de escolas
públicas. Esse era o dado que eu tinha. E os projetos de extensão lá na USP, na Biologia da
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A Estação Biologia é um projeto de extensão com foco na educação não-formal de Ciências e que tem, como um
de seus objetivos, a divulgação científica. Disponível em <https://estacaobiologia.ib.usp.br/p%C3%A1gina-
inicial> Acesso em 04 de novembro de 2023.
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USP, a maioria das pessoas veio de escola pública. Então, é essa a mudança que a gente faz,
uma Universidade mais participativa, uma ciência que de fato converse com a cultura, com a
sociedade.
Autores: Lucas, você falou dessa questão da Universidade e fiquei pensando no seu caminho.
Você cruzou o rio a nado e chegou na universidade “molhado”. Quais foram as suas
motivações para permanecer lá? De persistir. Como foi esse processo? Ah, aproveite e comente
um pouco acerca da relação do pessoal da quebrada com a Educação.
Lucas Andrade: Olha, permanecer na Universidade... foi difícil por diversos fatores.
Primeiramente, a questão financeira. A gente ganha bolsas de R$ 400,00 a R$ 500,00. E
realmente não dá para viver disso, então tive que correr atrás de políticas de permanência, atrás
de condução de graça e bandejão de graça, pelo menos. Eu passava o dia inteiro na USP e
voltava para casa. Ajudava em casa com essa bolsa, para pagar algumas contas. No meu caso,
por exemplo, não tinha necessidade de pagar aluguel. Não era necessário ajudar com contas tão
“pesadas” em casa, ajudava, sei lá, com cerca de R$ 200,00. Para mim, foi talvez aquela trilha
estreita que deu para passar. Muita gente talvez não passaria. Então, vejo muita dificuldade
nisso.
O segundo ponto é a questão de orientação, de saber como funciona a vida acadêmica e como
seguir uma carreira acadêmica, acho que foi uma das dificuldades. A questão de hierarquia com
professores, era uma dificuldade. Falar com professores, bater na porta dos professores para,
por exemplo, pedir uma iniciação científica foi algo que demorei para fazer. E foi por questão
de medo, por questão de não me sentir bom o suficiente.
Então, essa era uma segunda questão, entender a cultura universitária e acho que a terceira foi
me entender dentro dessa universidade. Me sentir parte disso. Não me sabotar, sabe, parar de
achar que ali não é lugar pra mim, porque fiquei do primeiro ao segundo semestre achando que
não, não devia viver aquilo... que não era para mim! Demorei muito para me identificar com as
pessoas que faziam o mesmo curso.
Na verdade, os projetos de extensão me fizeram permanecer. Me fizeram me sentir pertencido
a algo! Então, seriam essas três questões, a financeira, a cultura universitária e me sentir
pertencendo àquele lugar, sabe?
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Autores: Na sua palestra, algo que chamou a nossa atenção é a forma como você utiliza a
música do dos Racionais MC’s, sabe? Vofaz metáforas com o seu percurso. Fala um pouco
da sua relação com os Racionais e até mesmo da passagem que você usou, “não adianta querer,
tem que ser, tem que pá”
2
.
Lucas Andrade: A minha relação com Racionais... foi desde a época do cursinho. Foi muito
importante, porque... talvez, esteja a resposta da sua pergunta. Esse fôlego para seguir em
frente, para continuar sempre. Pela manhã, na época do cursinho, eu fazia camisetas para
vender. Eu pintava e estava ali... ouvindo os caras, saca? Um podcast.
Na época, ainda era incipiente o movimento de podcast. E muitas vezes ouvia rap, os Racionais
e foi o que mais bateu forte, junto com Emicida. Principalmente, porque são pessoas de
periferia, pessoas que tiveram um sucesso... de tocar corações e falar com grandes públicos.
Foi um combustível muito grande. Ouvia as músicas e chorando de ódio, com raiva de tudo que
acontecia. Eu tinha muita raiva, muito ódio. Cheguei na USP cheio disso, sabe? Aos poucos,
fui me curando. Demorou, foi um processo longo, mas foi assim para mim. Um ódio que me
movimentou tipo, de querer mudar coisas ao meu redor.
Me serviu não só como um catalisador de ódio. Não só como algo ligado apenas a esse tipo de
sentimento, mas também, de coragem, de uma obra intelectual. Assim, uma análise muito boa
do que eu vivi. Porque uma coisa é você viver e outra coisa, entender o que você vive. Então,
Racionais me fez refletir muito sobre quem sou na cadeia alimentar.
Me ajudou a me colocar no meu lugar. Vejo muitas pessoas vindo de periferia acessando bens
materiais, conquistando novos capitais culturais, coisas assim e não sabendo bem o que fazer
com isso para mudar a situação. Acho que os Racionais me ajudaram a olhar de outra forma...
sabe aquele olhar de pássaro, sobre quem sou eu? No meio daquele mapa inteiro que é São
Paulo, que é o Brasil, sabe? Enfim, me ajudou muito.
Usei eles na palestra também pelo fato de que eles sempre tiveram uma certa aversão pela USP,
especificamente por ser vista como um lugar elitizado. Eles não tocaram durante um bom
tempo e acho que até o momento, nunca tocaram. Tinha essa restrição, por ser um espaço
elitizado, majoritariamente de pessoas brancas. E usar Racionais dentro de um evento
universitário, para mim foi muito simbólico também para mostrar que eles, simbolicamente
estão ali.
2
Da Ponte Pra Cá, canção de Racionais MC’s.
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Apesar do Mano Brown não ter pisado na USP, certamente ajudou muitas pessoas negras a
entrar na USP. Ele colocou muitas, muitas pessoas de periferia para dentro da USP, trabalhando
na obstinação delas, na vontade de conseguir algo melhor. Tem uma música que se chama
Sou Mais Você
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, nossa! Essa música já me fez chorar demais, é um levante [citou um trecho da
música, abaixo].
Vamo acordar, vamo acordar
Agora vem com a sua cara
Sou mais você nessa guerra
A preguiça é inimiga da vitória
O fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar
Vamo acordar, vamo acordar
Cabeça erguida, olhar sincero
Tá com medo de quê? Nunca foi fácil
Junta os seus pedaços e desce pra arena
Mas lembre-se: Aconteça o que aconteça
Nada como um dia após o outro dia
RACIONAIS MC’S. Sou Mais Você. 2002 (1:37)
Projetos de Divulgação Científica na Universidade
Autores: Vamos falar um pouco de você dentro da Universidade. Quando você começou a se
envolver com os projetos de extensão? Como se deu esse envolvimento com a extensão? E
assim, quando é que você começou a ter a percepção que estava lidando com divulgação
científica?
Lucas Andrade: Quando fui entender o que era a divulgação científica? Quase no fim da minha
graduação (risos)! Assim, essa palavra, divulgação científica, não estava na moda. Na época,
não estava no patamar atual. Então, demorei muito por causa disso. Olhei muito para o lado da
Educação, afinal, foi o que me libertou, foi o que me despertou para poder entrar na
Universidade. Foi isso, assim, um clique...
E tiveram os professores, sabe, eles mudaram a minha vida. Eles não sabem disso, mas
mudaram. Então, vou trabalhar com essa de que posso mudar vidas. Então, primeiro teve
esse ímpeto para Educação, então, foi o que me levou aos projetos de extensão e, ao mesmo
tempo, era uma espécie de cuidado mental para mim também, porque todo dia pegava “busão”
de 1 hora e 40 minutos.
3
Canção de Racionais MC’s. Discografia disponível em https://www.racionaisoficial.com.br/ Acesso em 04 de
novembro de 2023.
9
Só de trem... 1 hora e 40 minutos para chegar na Universidade e ver uma realidade. Cruzava a
ponte, entrava na USP e parecia um portal para um mundo feliz. Pássaros cantando, árvores,
jardins, etc. E para mim, viver tudo isso em um mesmo dia e voltar para casa. E chegava em
casa sem conseguir explicar o que que vivia. Nunca consegui levar meu pai lá, por exemplo,
sabe? Tipo, meu pai adora a natureza. Meu pai adora jardim e tem um Jardim lindo na Biologia.
Nunca consegui levar ele lá. Nunca consegui levar muitas pessoas para lá. Então, para mim, era
como se vivesse dois mundos e isso era muito conflitante. Para o psicológico você fica meio
maluco.
Então, a extensão foi um exercício de sanidade. Tipo, juntar esses mundos de alguma forma,
me ajudou a resolver meus conflitos, de pensar se sou da ponte pra ou da ponte pra cá! Me
entendi como a ponte, como parte da ponte mesmo.
Então, foi quando percebi que podia utilizar minhas habilidades que aprendi na quebrada. Das
coisas que falei na palestra, tipo o freestyle, de fazer uma conversa com troca [dialogada], são
habilidades que desenvolvi fora da academia. Muita gente chama de soft skills e tal. Foram
valorosas nos momentos que dei aula, em cursinho, em projetos de extensão, então vi valor nas
minhas habilidades.
E concluí que não estava perdendo meu tempo. Demorei para entrar na Universidade, mas
aprendi a desenvolver habilidades boas o suficiente para me tornar um bom educador.
Autores: Em sua fala você trouxe exemplos de vários projetos de extensão, como Estação
Biologia, o Bio na Rua e Bio na Remo
4
, que são projetos de extensão muito articulados com a
comunidade. Comenta um pouco sobre envolvimento com a comunidade local.
Lucas Andrade: Eu estava acessando um mundo incrível da Universidade. Tive bons
momentos ali, no Bio na rua e no Bio na Remo. Era algo simples para a gente fazer, acho. Era
algo muito simples, pô, vamos pegar um microscópio, levar para lá... tem um monte de
microscópio e vamos levar para lá! Então, não é difícil. Acho que é difícil ter essa boa vontade.
E essa integração com os locais que você quer acessar. Isso sim, é difícil. Mas, para mim não
foi, porque sabia fazer isso, era natural me envolver com projetos locais, interagir com as
pessoas.
4
Bio na Rua/Bio na Remo. Disponível em < https://ccex.ib.usp.br/atividades-permanentes/bio-na-rua.html>
Acesso em 04 de novembro de 2023.
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Encontrei uma vazão para todo aquele conhecimento que estava acumulado ali. Então, nesses
momentos vi que, tipo, pô, com pouco esforço que a gente faz, a diferença era imensa para
as pessoas do outro lado. Então, comecei a simplificar as coisas que a gente ia fazer e perceber
que... não precisa de muito e também percebi que a galera da Biologia se engaja fácil com essas
coisas. Só faltava encontrar essa vazão e, claro, encontrar um meio de acessar, por exemplo, a
são Remo de alguma forma. Falar que é fácil acho que é diminuir um pouco. Talvez, essa não
seja a melhor palavra, mas não é algo mirabolante. Exige esforço, com certeza, mas não é algo
de outro mundo que você vai fazer com essas pessoas. É fazer parte do meio, chegar na
humildade. Eu acho que é uma palavra muito forte que eu preciso colocar. Tipo, é chegar na
humildade de igual para igual e trocar. É estar disposto a ter essa troca.
Projetos de Divulgação Científica que fiz a partir da perspectiva periférica com a bagagem
que tive na universidade
Autores: Participando desses projetos, atuando com as pessoas, sentindo a comunidade... e
você começa a trabalhar, depois da Universidade, com Divulgação Científica. Como você
captou esse lance de trazer a perspectiva periférica para o seu trabalho? Percebo que em nenhum
momento você tentou desvincular, pelo contrário.
Lucas Andrade: Olha, sempre carreguei comigo essa identidade periférica e sempre tive que
colocar na balança. Me mostrar bom o suficiente para a academia para que, por exemplo, as
pessoas não acharem que faço besteira, tipo dancinha no TikTok. Mas, ao mesmo tempo, me
mostrar real para a periferia. Enfim, isso foi como um motor para mim, sentia esse sentimento
constante de pô, será que as pessoas da quebrada me autorizam a falar que sou de quebrada?
Apesar do fato de estar a maior parte do dia dentro da USP, ligado? E foi assim, durante
cinco, seis anos... na verdade, foram sete anos ao todo. Fiquei mais um ano ainda, inclusive, fui
morar em um quartinho lá no Butantã durante um ano e meio. Então, durante esse momento eu
falava assim, mano, será que posso me sentir autorizado nesse sentido? Assim, será que as
pessoas não irão falar que você “paga” de quebrada e tal. Sempre fiquei pensando nisso.
Sempre me senti motivado a me apresentar como alguém periférico, alguém que vem da zona
sul de São Paulo, da periferia, e me apresentar dessa forma me abriu portas para pensar em
estratégias [para trabalhar a Divulgação Científica]. Esse incômodo, por sua vez, sempre me
fez participar de coisas da periferia mais ativamente. Um exemplo foi o projeto Possibilidades.
s realizamos uma palestra, mas antes mesmo de participar, eu tinha ido muitas vezes como
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ouvinte, ser o público. Na palestra, discutimos sobre fake news, aliado com a cantora Denise
Alves, uma cantora local. Acho que foi um exemplo legal de como surgiu a ideia do tipo de
divulgação científica que gostaria de fazer. Foi natural.
Sabia que tinha que estar nesse lugar e era o lugar que eu me sentia bem. Então, acho que essa
perspectiva periférica o vem só do meu “antes da universidade”. Nesse ponto o Racionais me
ajudou, me situou. Eu não me deixei ser levado pela cultura acadêmica necessariamente. Eu
falei, opa, você precisa voltar, volta para cá.
Autores: Durante o período pandêmico, de isolamento social, vocês fizeram um trabalho de
divulgação científica na quebrada. Conta um pouco sobre essa experiência.
Lucas Andrade: Assim como falei do Bio na Remo, é algo que você faz um pouco e tem um
grande impacto para as pessoas. A ideia durante a pandemia era falar sobre divulgar as medidas
de prevenção. A ideia não era trazer conhecimentos de outro mundo, mas trocar esses
conhecimentos com quem é de quebrada e isso tem um potencial gigantesco, inclusive de salvar
vidas. E na periferia o vírus estava matando mais! Porque tinha uma questão, era uma sindemia
junto com uma pandemia. Os problemas sociais potencializados pelo aumento da desigualdade
e o coronavírus resultou em muitas mortes na quebrada. Então, vi essa necessidade de falar um
pouco. Simplesmente, falar para uma pessoa lavar a mão na quebrada faz muita diferença.
Demorei para entender como poderia atuar, sem expor a mim e a minha família.
É isso, esse projeto [feito na pandemia] do Inimigo Invisível
5
, resultou em um quadrinho [HQ].
Surgiu dessa percepção, não minha particularmente, mas de um coletivo, o Corre Coletivo. A
ideia era fazer algo para as crianças ficarem em casa. E foi uma percepção não nossa, mas
do Sesc Interlagos, que nos financiou. No caso, o Sesc percebeu que a necessidade não era
por cestas de alimentos, mas também de informação para as pessoas permanecerem em casa.
Foi um trabalho coletivo. Eu diria assim, que o fato de o Sesc ter profissionais sensíveis a causa
foi fundamental para rolar o projeto. E claro, fico grato por eles terem visto o meu trabalho,
como um artista potencial para isso, com meu trampo dentro da divulgação científica.
Então, foi assim que surgiu essa ideia. As coisas foram se montando muito rapidamente, todo
mundo já sabia o que fazer. A gente estava com muita energia, tanto que a gente produziu esse
quadrinho em dois meses e meio. Tipo, para um quadrinho é um tempo muito rápido. A
5
Conheça mais sobre o projeto que resultou no projeto O Inimigo Invisível disponível em <
https://ocorrecoletivo.wixsite.com/ocorre/oinimigoinvisivel> Acesso em 04 de novembro de 2023.
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impressão, por exemplo, foi feita em cerca de três meses e estava pronto! Creio que isso é
um case perfeito de sucesso, porque tem todos os pés que considero fundamental para algo
ligado à divulgação científica. Tem um na arte, saca? Uma coisa artística, uma coisa real,
que leva em consideração os fatores sociais e o embasamento científico necessário.
Tudo aconteceu a partir de uma ideia do Lelo [Weslley Silva], do Corre Coletivo, de fazer as
crianças ficarem em casa. Basicamente, participaram vários artistas de quebrada, tudo via
online. Juntamos essas artes em um PDF e enviamos para todo mundo para as pessoas
colorirem. A partir disso, o SESC conheceu o trabalho e falou, pô, faz um quadrinho para a
gente, já que a gente está distribuindo cestas básicas para as famílias. Aí, foram distribuídos as
cestas e os quadrinhos.
O Sesc imprimiu mil cópias! E aí, depois, na Virada Cultural de São Paulo, a Secretaria de
Cultura pediu mais de mil e quinhentas cópias. Nós distribuímos de casa em casa, junto com
kits de higiene, no Jardim Gaivotas [bairro em São Paulo]. Foi lindo a cena da gente distribuindo
o material e, inclusive, junto com lambe que a gente colou nas paredes com uma chamada para
a galera: na quebrada o vírus mata mais! Uma mensagem curta e direta. Esse nosso projeto
ganhou o prêmio HQ mix 2021!
Autores: Lucas, caminhando para o fechamento do nosso papo, quero retomar uma passagem
da sua palestra. Inclusive, na qual você fez uma alusão com a música dos Racionais. Você citou
um trecho que dizia que “dá ponte pra cá, se tudo é uma escola, minha meta é dez, nove e meio
nem rola”. Como você tem levado isso para os seus projetos? Aliás, comente um pouco sobre
projetos futuros.
Lucas Andrade: Primeiro, quero falar desse trecho da música, acho muito importante pensar
que a minha nota tem que ser dez! Nove e meio não rola. Para quem vem de periferia, mesmo
sendo um homem branco, com certos privilégios, a meta tem que ser sempre dez. Porque, quem
vem de quebrada precisa tirar dez em tudo, para poder alcançar o mínimo, não é? Inclusive,
nessa ação que a gente fez de entrega de quadrinhos nós tínhamos um triciclo com um lambe-
lambe escrito atrás: Por que temos que correr dez vezes mais para ter o nimo? Por que tive
que fazer mais três anos de cursinho para entrar na universidade, sendo que pessoas que
estudaram apenas um mês e passou? Enfim, é a questão de acesso às oportunidades.
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Falando de projetos futuros. Estou trabalhando em um podcast novo, Sinal de Vida
6
. Era um
podcast completamente improvável de acontecer, porque estava numa situação de voluntariado
com pessoas sem nenhuma ligação com audiovisual e que nunca fizeram podcast.
Simplesmente, levei um gravador para encontrar uma raia que está ameaçada de extinção. Tipo,
pensei... tenho um gravador aqui em casa, por que não levo? Trata-se de um podcast narrativo
que vai falar sobre uma expedição que vivenciamos em busca de uma raia. Então, vou me
colocar como personagem na história. o posso falar muito ainda, mas o fato é que
encontramos a raia. Considero que encontramos porque ouvimos pessoas de fora. Ou seja,
fomos além do que a nossa metodologia se propunha. A curiosidade, a ousadia que a gente teve,
a paixão por aquilo nos levou a ouvir pessoas. Relatos de pessoas improváveis, por exemplo,
de seguranças e de até mesmo visitantes. Foi uma escuta ativa, de uma maneira investigativa.
Tipo, calma... essas pessoas viram essa raia nesse lugar em tal hora, então, vamos nesse lugar
nesse horário! É aquela coisa da troca. A divulgação científica precisa ser bidirecional. Não fui
que inventei isso. Paulo Freire fala sobre isso na Educação! Então é isso, tudo será registrado
em uma temporada de podcast.
Outro projeto é o meu quadrinho, Mizu. Esse sim, fala bastante sobre quebrada. Então, conta a
história de uma garota de quebrada que vive em um bairro que vem sofrendo as consequências
das mudanças climáticas. A Mizu, é uma garota que começa a reparar em pequenas coisas da
vida, por exemplo, uma gota que caiu do céu, uma única gota que caiu do céu depois de um
tempo de seca total. E isso vai levá-la a uma grande aventura! Ainda estou no primeiro volume
e a minha ideia é fazer cinco volumes. O roteiro está pronto!
Ah, tem o projeto Aguapé. A gente vai fazer pedalinhos aqui na represa Billings usando sucata
de bicicleta como matéria prima para os pedalinhos. Vamos criar um roteiro educativo de
pedalada para as crianças e para as pessoas locais, focando em alguns aspectos da
biodiversidade do local, principalmente os pássaros. E aí, vamos fazer um livro ilustrado das
espécies que avistamos. Inclusive, conseguimos financiamento com a Secretaria de Cultura
de São Paulo e já estabelecemos parcerias com o Corre Coletivo e com uma bióloga local que
conheci recentemente.
Autores: Lucas, por fim, tem algo que gostaria de falar e que não contemplamos em nossa
conversa?
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Conheça os podcasts selecionados disponível em < https://serrapilheira.org/ano/camp-serrapilheira-2023-
podcasts/> Acesso em 04 de novembro de 2023.
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Lucas Andrade: Sim, apenas uma mensagem que acho importante. Não é algo que tirei da
minha cabeça, mas que percebi das minhas vivências. Inclusive, teóricos da divulgação
científica falando sobre isso, né? Não sei se conhece o Prof. Yuri Castelfranchi
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, da UFMG. O
conheci na Pós-Graduação e ele fala que precisamos nos aliar com coletivos de fora da
Universidade. Então, acho que isso é um elemento muito importante, começar a divulgar a partir
da não divulgação, a partir do network com coletivos de cultura, com coletivos que não
necessariamente falam sobre ciência, mas atuam no local que você quer atingir, seja virtual ou
não. Então, faça parte de coletivos, afinal, é uma maneira muito efetiva de trocar ideia para
atuar de forma mais horizontal.
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Currículo Lattes disponível em < http://lattes.cnpq.br/8092059577367273> Acesso em 04 de novembro de 2023.