Acolhimento em leito em um CAPS III: algumas reflexões

Amanda Takemoto Peruca1

Roselania Francisconi Borges2

 

Resumo

Este estudo teve como objetivo conhecer o funcionamento de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS III), após a implantação de leitos de acolhimento noturno. Foram entrevistados servidores de diversas áreas profissionais do referido dispositivo (enfermagem, serviço social, medicina, psicologia e terapia ocupacional). Com a análise dos resultados, conclui-se que esse dispositivo segue, majoritariamente, o modelo proposto pela Reforma Psiquiátrica Brasileira: a atenção psicossocial. Porém, ainda percebem-se dificuldades para desenvolver essa estratégia de cuidado, uma vez que os leitos de acolhimento noturno foram implantados recentemente e a formação básica dos trabalhadores deste dispositivo está mais voltada ao modelo asilar/manicomial. Um grande desafio é o investimento na formação permanente dos profissionais.

Palavras-chave: Acolhimento; Atenção Psicossocial Estratégica; CAPS III; Leitos de Acolhimento; Política Nacional de Saúde Mental; Redução de Danos;Terapia ocupacional.

Abstract

This study aimed to know the functioning of a Psychosocial Care Center (CAPS III), after the implantation of nightcarebeds. Servers from various professional áreas of this device (nursing, social work, medicine, psychology and occupational therapy) were interviewed. With the analysis of the results, it is concluded that this device follows, mainly, the model proposed by the Brazilian Psychiatric Reform: psycho social care. However, it is still difficult to develop this care strategy, since the nigh t reception beds were recently implemented and the basic training of the workers of this device is more focused on the asylar/mannicomial model. A major challenge is the investment in the permanent training of professionals.
Key Words: Embracement; Harm Reduction; Psychosocial Care Center III; Occupational therapy; National Mental Health Policy; Reception Beds ;Strategic Psychosocial Care.
 

1.Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná, BR. 2. Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná, BR. * autor para correspondência. Email: rfborges@uem.br


Introdução

 

A promulgação da Lei 8.080/1990(1) que criou o Sistema Único de Saúde (SUS) e da Lei 10.216/200(2) que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental(2) promoveram novos rumos para a assistência em saúde mental no Brasil. Um dos pontos fundamentais desta última é o Art. 4º que prevê a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes(2). Sendo assim, as internações psiquiátricas, antes não regulamentadas, agora só são realizadas mediante laudo médico circunstanciado que caracterize seus motivos. 

A criação de legislações faz parte do campo da saúde mental e da atenção psicossocial, que engloba um processo social complexo e possui dimensões teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-política e sociocultural que precisam ser implantadas no cotidiano dos serviços. No lastro de tais concepções, pouco a pouco foram sendo criados serviços e dispositivos substitutivos ao tradicional modelo manicomial centrado nas internações em hospitais psiquiátricos(3).

Esses dispositivos constituem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), instituída em 2011, pela Portaria nº 3.088(4) e atualizada pela Portaria 3.588 de 21 de dezembro de 2017(5). Um de seus componentes é o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) considerado como dispositivo de atenção psicossocial especializada. Os CAPS estão presentes em todos os estados brasileiros e possuem como definição serem [...] dispositivos de atenção em saúde mental, de base comunitária, que têm como missão substituir, progressivamente, os hospitais psiquiátricos como referência para a população no acesso aos cuidados em saúde mental (6).

A Portaria nº 336/2002 estabelece algumas especificações dos CAPS, como suas modalidades (CAPS I, II e III); porte populacional de cobertura (com o mínimo de 20.000 habitantes); população alvo (CAPS infanto juvenil: atendimento a crianças e adolescentes e CAPS AD: atendimento de pacientes com transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias psicoativas); capacitação (realizar prioritariamente o atendimento de pacientes com transtornos mentais severos e persistentes, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não-intensivo); horários de funcionamento; equipe multiprofissional; alimentação; atividades e serviços; entre outras. Entre as diversas modalidades de CAPS, de acordo com as diretrizes da Portaria 336/2002, o CAPS III, em particular, se constitui em um serviço ambulatorial de atenção contínua que funciona durante 24 horas, diariamente, incluindo feriados e finais de semana. Presta atendimento individual (medicamentoso, psicoterápico, orientação, entre outros); em grupos (psicoterapia, grupo operativo, atividades de suporte social, entre outras); em oficinas terapêuticas executadas por profissional de nível superior ou nível médio; à família; visitas e atendimentos domiciliares; atividades comunitárias enfocando a integração do usuário na comunidade e sua inserção familiar e social e acolhimento noturno, nos feriados e finais de semana, com leitos, para eventual repouso e/ou observação(6).

Estes dispositivos de atenção psicossocial procuram dispor de operadores de diversas categorias profissionais, inclusive aquelas consideradas “externas” à área da saúde, como músicos, artistas plásticos e artesãos. Estes devem procurar atuar no território, que não se reduz ao espaço geográfico, desenvolvendo relações com os vários recursos existentes no âmbito da comunidade, criando alianças sociais. Este é o princípio da intersetorialidade, em que os serviços de atenção psicossocial devem sair da sede do serviço e buscar na sociedade vínculos que complementem e ampliem os recursos existentes, articulando-se com a RAPS, com o campo da saúde em geral e no âmbito das políticas públicas; ou seja, as políticas de saúde mental e atenção psicossocial devem se organizar em rede (3).

Os CAPS assumem uma especial relevância no cenário das novas práticas em saúde mental no país. São dispositivos estratégicos para a reversão do modelo hospitalar que ainda é hegemônico no Brasil. Uma importante diferença entre os CAPS III e os hospitais psiquiátricos são os leitos em salas abertas, onde é possível acompanhar as pessoas por todo o período em que elas estiverem internadas. Conforme a Declaração de Caracas os CAPS devem ser substitutivos e não complementares aos hospitais psiquiátricos (7-3).

Mesmo sendo de suma importância, por serem serviços de atenção psicossocial que funcionam 24 horas, os CAPS III, CAPS AD III e AD IV ainda são minoria no Brasil. De acordo com estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(8), dos 5.570 municípios brasileiros, a maior parte (68,3%) possui até 20 mil habitantes e apenas 310 tem mais de 100 mil habitantes. Por estes dados é possível avaliar que a implantação de CAPS III se torna não recomendável na grande maioria, visto que para que os CAPS III sejam implantados é necessário que o município tenha mais de 200.000 habitantes(6). Sendo assim, esta implantação esbarra nesse índice populacional, embora haja demanda para tal atendimento.

 Até dezembro de 2020 o Brasil contava com 2.785 CAPS habilitados pelo Ministério da Saúde(9). Por outro lado, o número de publicações em periódicos científicos sobre CAPS e, em especial, sobre CAPS III não é expressivo, havendo em 2020 em torno de 98 estudos sobre as diversas modalidades de CAPS e, dentre estes, poucos sobre CAPS III e CAPS AD III e AD IV. Na prática, a relevância do CAPS III enquanto serviço de atenção em saúde já é reconhecida em todo o território nacional, visto que os mesmos atendem 24 horas e acolhem pessoas em situação de crise em seus leitos de acolhimento noturno. Ademais, devido a sua importância enquanto dispositivo de atenção 24 horas substitutivo aos hospitais psiquiátricos, entendemos que se justifica a necessidade de constantes estudos a respeito de seu funcionamento, visando melhorias na assistência em saúde mental às pessoas em situação de crise.

Trazendo tal realidade para o Estado do Paraná, este possui 06 CAPS III (sendo 03 deles CAPS III e 03 CAPS AD III)(9). Alguns foram inaugurados nos últimos anos. Em função de tal realidade, entende-se pertinente conhecer o funcionamento de tais dispositivos visando refletir sobre o trabalho desenvolvido em termos de possibilidades e de limites.

 

Objetivo

Compreender como é o trabalho desenvolvido nos leitos de acolhimento noturno em um CAPS III, localizado no Estado do Paraná.

 

Metodologia

A amostra foi constituída por profissionais da equipe técnica de um CAPS III tendo como critérios de inclusão: fazer parte da equipe técnica que atende nos leitos de acolhimento noturno e aceitar participar do estudo. Após aceite, foram entrevistados seis profissionais, das seguintes áreas: enfermagem, técnico em enfermagem, serviço social, medicina, psicologia e terapia ocupacional. A entrevista foi composta por questões abertas versando sobre os leitos de acolhimento, o perfil da demanda atendida, o conceito de redução de danos e a lógica de funcionamento do serviço. Os dados foram analisados e elaboradas categorias, sendo estas discutidas à luz da literatura. Para preservar o sigilo dos entrevistados, estes foram identificados com as iniciais E1, E2, E3, E4, E5 e E6.

 

Resultados e Discussão

 

Sobre os Leitos de Acolhimento no CAPS III

A formação básica dos profissionais de saúde é considerada um impasse, uma vez que ela ainda é formatada no modelo médico-centrado, mas os profissionais se veem responsáveis por implantar o modelo da atenção psicossocial, muitas vezes tendo que romper radicalmente com a maioria dos conceitos estudados durante sua formação. Essa situação causa conflitos entre proposta e prática, pois coloca em choque o paradigma hegemônico e o modelo assistencial proposto pela Reforma Psiquiátrica Brasileira (10). Nesse caso, no cotidiano dos serviços surgem alguns desafios e dificuldades, apontados pelos entrevistados E1 e E2:

O trabalho ainda é inicial e temos várias coisas [...] para serem ajustadas, porque é um projeto [...] novo para todos os funcionários que estão aqui.

[...] é um leito que a gente tem uma quantidade de funcionários limitados, em que a gente não tem profissionais que sejam completamente treinados e [...] acostumados a lidar com pacientes com alta gravidade. 

 

Apesar das dificuldades, alguns profissionais acreditam que os leitos são:

 

[...] uma opção a mais para a gente não precisar encaminhar para a internação [...] antes os [...] nossos usuários eram encaminhados para a Emergência e para o Hospital Psiquiátrico e agora a gente consegue manter aqui em avaliação, mais próximo da gente (E5).

 

Fazendo críticas ao excesso de demanda, os profissionais avaliam que:

 

[...] está faltando uma melhor articulação entre o serviço de CAPS III, independente dessa questão dele estar funcionando 24 horas, mas sim realmente uma melhor articulação com as Unidades Básicas de Saúde [...] estamos percebendo que está sendo muito encaminhado, devido até a estratificação de risco em saúde mental [...] mas como a gente também recebe por demanda espontânea, então às vezes realmente vira uma porta de entrada, e às vezes o que falta é um pouco mais de cuidado da relação com o paciente está tendo lá na Unidade, não fazer simplesmente encaminhamento pra cá porque não tem uma consulta psiquiátrica na rede (E4).

 

Os apontamentos dos entrevistados acima são corroborados por Souza et al(11) ao afirmarem que o atendimento no território, pautado na integralidade do cuidado, oferecido na Atenção Básica pode ser um importante suporte antes, durante e após a crise. Consoante a isso, Borges(12) assevera que o cuidado contínuo na Atenção Básica propicia o acompanhamento contínuo e a formação de vínculos de confiança e de apoio e momentos de fragilidade psíquica.

Tais avaliações são embasadas no cotidiano do cuidado que oferecem e pode representar importantes contribuições para a melhoria do funcionamento da RAPS. No entanto, há alguns apontamentos equivocados sobre a atenção 24 horas, como por exemplo, o retorno do paciente ao leito de acolhimento como um evento negativo:

Às vezes é muita demanda né. Às vezes o paciente vem [...] Com repetição, vem aqui e volta, vem aqui e volta, então fica, assim, muita repetição de paciente, tirando vaga de um e de outro (E5).

Todavia, esse acontecimento demonstra que, a cada vez que retorna ao leito de acolhimento, seja por uso de substâncias psicoativas ou sofrimento psíquico, o vínculo formado entre o usuário e o CAPS III vai sendo fortalecido ou consolidado, sendo esta uma conquista positiva para o dispositivo. O fato de alguns profissionais compreenderem as recaídas como insucesso ou fracasso no cuidado deriva de uma visão centrada no modelo médico de cura ou abstinência. Agregar outros referenciais mais voltados ao cuidado é uma das dificuldades advindas da formação médico-centrada dos profissionais de saúde, pois ainda há grandes desafios em construir estratégias que ampliem a participação e autonomia dos usuários(13).

A Demanda Atendida

O trabalho em um CAPS III tem algumas especificidades em relação à demanda de pessoas com sofrimentos psíquicos ou dependência química. Destacando que o percentual de usuários com dependência química é bem maior, um dos entrevistados afirma que existem especificidades no atendimento dessas duas demandas que são distintas, por mais que:

[...] o primeiro atendimento e admissão é praticamente igual (E3).

A equipe manifesta estar mais preparada para o atendimento aos usuários que apresentam sofrimento psíquico, pois já sabem como proceder em relação a eles. Porém, o profissional E3 faz uma importante reflexão sobre o preconceito existente em relação à essa demanda nos demais serviços da RAPS:

Eles têm bastante preconceito contra o paciente, eu vejo isso bastante nas UBS. O paciente com transtorno mental é um paciente que pode ser atendido pela UBS se ele estiver estabilizado [...] as pessoas tendem em ver o paciente psiquiátrico só a parte psiquiátrica, eles acabam não vendo ele integralmente, como uma pressão alta, uma alteração de tireóide, uma diabetes, um problema cardíaco.

Diante dessas declarações, prevalece a lógica de trabalho no modelo de atenção psicossocial em consonância com os objetivos da RAPS de promover a substituição progressiva de internações em hospitais psiquiátricos como referência para a população no acesso aos cuidados em saúde mental. Essa lógica vai contra o formato clássico de linha de montagem das equipes multiprofissionais. Nessa atuação, o usuário ganha destaque como participante, que possui aspectos políticos, biopsíquicos e socioculturais. Os efeitos terapêuticos superam a visão de um tratamento voltado apenas para a remoção de sintomas e a supressão de carências (14).

Apesar de a equipe se mostrar preparada para lidar com esse tipo específico de demanda, afirmam que existem dificuldades que devem ser revistas e superadas, como:

[...] a gente não dá conta de tudo, a demanda é grande dos usuários que vem no dia a dia, nos grupos, na rotina diária do CAPS e dos leitos (E5).

O atendimento aos usuários de álcool e outras drogas não aparenta estar tão delimitado quanto o atendimento aos usuários que apresentam sofrimento psíquico. Um dos profissionais afirmou que o CAPS

[...] não é um lugar para internar, na minha opinião, para internar pessoa com dependência química e misturar com pessoas com transtorno mental [...] eles estão tomando vaga dos pacientes com transtorno mental que precisam estar sendo acompanhados mais de perto (E6).

 

Redução de Danos: Um Grande Desafio

Por mais que o uso de substâncias psicoativas seja um fenômeno que acompanha a evolução da humanidade, a história das políticas públicas brasileiras em relação às drogas começou a ser escrita somente na década de 1990(15).

As leis brasileiras surgiram simultaneamente às legislações proibicionistas norte-americana, sendo que uma das premissas de tratamento no proibicionismo é a abstinência. A alta exigência sobre a abstinência estigmatiza os sujeitos que passam por episódios de recaída ou reincidência ao uso das drogas, ficando marcados como fracos, imorais e vagabundos pela sociedade. Ademais, as políticas proibicionistas também são a favor da redução da oferta e demanda de drogas, para tanto, utilizam de intervenções autoritárias de criminalização da produção, tráfico, porte e consumo das substâncias ilícitas (15-16).

Em contrapartida com o paradigma proibicionista, o conceito de Redução de Danos (RD) tem como finalidade buscar alternativas de menor risco e dano aos consumidores de álcool e outras drogas e à sociedade. Seu principal foco é o cuidado com o indivíduo, não exigindo a proibição ou abstinência das substâncias psicoativas(17).

A Política de RD é corroborada pela maioria dos profissionais deste CAPS:

 

Eu acho ela (a política de redução de danos) muito importante. Até porque na grande maioria das vezes nós estamos lidando com pacientes que já tiveram múltiplos internamentos, pacientes que já tiveram muitas tentativas de abstinência total de todos os tipos de drogas (E1).

O que adianta você pegar e colocar a regra da proibição [...] a grande questão é fazer com que o indivíduo reduza o uso excessivo de algumas substâncias (E4).

Esses apontamentos vão ao encontro da RD, uma vez que a fala destes profissionais demonstra a descrença na abstinência como forma de tratamento eficaz. No entanto, alguns entrevistados ainda se pautam no paradigma proibicionista:

[...] eu não sou muito ligada (na política de redução de danos), não gosto [...] apesar de saber que ajuda (E6).

Eu não vejo que isso seja bom (E3).

Muitos profissionais ainda prezam pela abstinência como forma efetiva de tratamento:

Tem uns que saem daqui e vai direto pro álcool e drogas. Então às vezes a gente fica pensando... Redução de danos, mas é só para dar uma melhorada, aqui reestabelece, dá um vigor melhor, melhora um pouco, daí volta tudo de novo. Como a gente fala, aqui é um enxuga gelo, sabe? (E2).

 

Mesmo que as políticas de saúde em relação às drogas estejam mudando e se desvinculando do discurso da abstinência proibicionista, muitos profissionais ainda insistem no abandono da droga, querendo colocar o usuário no isolamento e garantir o controle da abstinência pela internação(18). Dessa forma, as práticas continuam estagnadas e acabam por estigmatizar os indivíduos, como é demonstrado na seguinte afirmação:

[...] se a gente tem uma postura de “eu não vou fazer”, a gente tem que procurar lutar, não é o bar que tá ali na frente que você vai sair correndo lá pra dentro, tem que ter um pouco de perseverança. Eu acho que é assim, quando a gente quer uma coisa a gente tem que lutar contra [...] tem muitos que entram aqui [...] e saem doidinho pra [...] retornar para o álcool de novo.

De todo modo, alguns profissionais reconhecem os benefícios da RD, compreendendo-a como um recurso que pode potencializar formas de cuidado que visam:

[...] diminuir a gravidade do quadro até que o paciente consiga ter um insight ou um apoio social familiar para conseguir ficar na abstinência total (E1).

 

Lógica Manicomial versus Atenção Psicossocial

A Reforma Psiquiátrica brasileira nas últimas décadas causou mudanças nas dimensões teórico-conceitual, jurídico-política, sociocultural e técnico-assistencial do campo da atenção psicossocial(3). No entanto, sua consolidação trouxe consigo diversos desafios que devem ser discutidos à luz das teorias do campo da saúde mental e da saúde coletiva(19). Um deles é a formação de recursos humanos. Lobosque(20) afirma que: A formação permanente é indispensável aos gestores, aos trabalhadores e aos usuários: na sua ausência, permanecem impossibilitados de problematizar as questões advindas das inusitadas práticas que exercem. Yasui e Costa-Rosa(10) alegam que o maior desafio é a mudança de paradigma e esta não está presente na formação básica dos profissionais de saúde. Essa contradição entre paradigmas causa um conflito entre proposta e prática, intenção e ação.

Essa dualidade entre os modelos pode ser verificada também no contexto deste CAPS III. Em um primeiro momento, é possível inferir que a maioria dos profissionais segue o novo modelo assistencial, como é possível perceber no discurso de alguns profissionais:

[...] para evitar que ele vá ser internado no Hospital Psiquiátrico, acho que aqui é ideal (E6).

A gente vai mostrando para as pessoas que aqui não é encarceramento (E4).

De todo modo, as diretrizes preconizadas pela RAPS(3) sobre respeitar os diretos humanos, garantir a autonomia e liberdade, promover a equidade e combater estigmas e preconceitos fazem parte da prática de trabalho desses funcionários. O entrevistado E4 mostra a diferença entre os serviços de saúde mental:

Tem muita gente que já passou por enfermarias psiquiátricas ou hospitais [...] e está bem carregado no estigma [...] de ficar em ambientes fechados, com dificuldade de acesso, de contato com familiares [...].

Sobre o CAPS III, este mesmo profissional afirma que

Uma boa parte se vincula muito bem à equipe. Vê aqui como o próprio serviço de referência. Então ela sabe que se ela não estiver legal, ela pode vir aqui procurar a equipe e ela vai estar sendo acolhida nesse sofrimento [...] eu não tenho visto [...], através da própria fala do usuário, um lugar onde eles se sintam tão bem acolhidos quanto aqui (E4).

Porém, o modelo asilar também aparece no discurso desses profissionais. Yasui e Costa-Rosa(10) apontam que essa situação ocorre com mais frequência nos lugares em que o CAPS foi implantado a partir de um Ambulatório de Saúde Mental. De acordo com o profissional E5, é exatamente essa a realidade do CAPS III:

Como era um ambulatório que se transformou em CAPS, ainda vejo muita resistência da equipe em trabalhar conforme a proposta de CAPS.

Dessa forma, algumas atitudes não estão totalmente alinhadas à práxis crítica proposta pelo novo modelo técnico-assistencial, como evidenciado em algumas falas. O entrevistado E2 relata a hierarquização entre os profissionais:

Nós somos [...] supervisionados pela enfermeira [...] em certas situações, a gente só recebe a resposta dela [...] É a enfermagem que manda mais [...]. Nós somos mais subordinados [...] a gente pensa ‘vamos melhorar desse jeito’ mas a gente esbarra nas burocracias, nos protocolos, além disso, a gente só reclama às vezes de certas situações, põe em pauta o que tá precisando e depois fica com eles (a direção) a resolução [...] não depende de mim as mudanças.

Situações como a relatada pelo profissional E2 reproduzem a divisão social do trabalho no campo da saúde, gerando uma hierarquização das relações, como se um saber predominasse sobre os outros. Essa típica divisão do modo capitalista de produção divide as atividades e tarefas e faz com que os profissionais tenham pouca ou nenhuma relação entre si. A assistência hierarquizada é contrária a abordagem multidisciplinar, que tem como característica o estudo de um objeto sob diferentes pontos de vista, ou seja, a justaposição de disciplinas em um único nível(10).

Outra opinião, expressada pelo entrevistado E6, mostra a preocupação e o incômodo em atender nos leitos de acolhimento demandas que não são, propriamente, da saúde, visto que:

Do leito eu vejo as dificuldades porque o leito não está sendo visto como um atendimento especificamente saúde, mas está sendo usado pela rede como um tapa buraco da assistência social [...] Eles não sabem onde colocar um paciente que é morador de rua. O paciente vai lá, faz uma queixa, parece que eles já têm um preparo para saber que vão ser internados porque eles têm uns contatos entre eles, os pacientes, principalmente os moradores de rua [...]. O paciente queria mesmo é ficar aqui, porque aqui ele fica tranqüilo, fica protegido, né. De repente, no frio a gente percebe que aumentou a demanda, porque para ele é muito mais cômodo ficar aqui.

Essa manifestação por parte do entrevistado expõe uma situação peculiar: a área da saúde atendendo demandas que, no limite, seriam da área da assistência social. Pensar esse limite é algo deveras importante para que todos saibam seu papel e suas especificidades de atuação. Porém, atender demandas que fogem ao contexto exclusivo da Saúde seria um evento bastante raro, visto que, as diversas necessidades do sujeito se entrecruzam e demandam ações intersetoriais entre as diversas políticas públicas, entre as quais a saúde, que pode ser a porta de entrada para o atendimento.

Nesse sentido, o trabalho pautado na lógica da atenção psicossocial prevê a oferta de cuidados assentados no princípio da intersetorialidade. Tal recomendação foi feita na IV e última Conferência Nacional de Saúde Mental(21). Nesse evento foi reconhecida a necessidade [...] inexorável da articulação intersetorial de políticas e programas [visando inserir as] lutas da saúde mental no campo mais geral da conquista dos direitos sociais de cidadania, dos direitos humanos e por uma sociedade mais justa e solidária.

A noção de intersetorialidade vem da compreensão de que saúde que engloba o sujeito em sua totalidade, envolvendo diversos setores, como educação, habitação, trabalho, segurança, entre outros. A parceria entre esses setores das políticas públicas pode ser um imperativo para superar grandes desafios [...] através de decisões compartilhadas entre as instituições e os setores governamentais que produzam um impacto positivo sobre a saúde da população. Desse modo, busca-se promover [...] a inserção do usuário em espaços comunitários, rejeitando a exclusão social e a marginalização, seja real ou simbólica(15).

Visando superar os desafios decorrentes da prática, há algumas estratégias que podem ser tomadas. A formação permanente destes profissionais é uma delas, visto que proporciona a redefinição e reorganização dos processos de trabalho. Ademais, a articulação de alianças entre os diversos setores da sociedade é importante para a expansão de uma rede de atenção e cuidado pautada nos princípios de territorialização, integralidade e participação popular(12).

Conclusão

O objetivo deste estudo foi conhecer o funcionamento de um CAPS III após a implantação de leitos de acolhimento noturno, sendo possível constatar que a implantação de tais leitos é vista como um benefício ao usuário pois, em muitos casos, evita internações de longo prazo. Porém, para alguns profissionais o retorno do usuário ao leito é visto como um fracasso na assistência.

De forma geral, o funcionamento deste dispositivo segue, majoritariamente, o modo assistencial proposto pela Reforma Psiquiátrica Brasileira: a atenção psicossocial. No entanto, alguns dados evidenciam concepções e formas de atuação que não estão totalmente alinhadas a esse modo de cuidado, visto que, prevalece a divisão social tradicional do trabalho no campo da saúde inviabilizando práticas multiprofissionais mais horizontalizadas. Ademais, algumas concepções que respaldam as práticas de cuidado se mostram contrárias ao conceito de Redução de Danos, valorizando sobremaneira, ou tendo como meta, a abstinência como forma efetiva de tratamento. 

É possível considerar que tais concepções ainda prevalecem, pois a formação básica dos profissionais de saúde permanece voltada ao paradigma asilar/manicomial, o qual acentua o modelo médico-centrado de atendimento, embora tenham que implantar no seu cotidiano de trabalho as formas de cuidado voltadas à atenção psicossocial. 

Conclui-se que para superar os desafios de suplantar o modelo asilar/manicomial é preciso investir na formação permanente dos profissionais promovendo a articulação entre os diversos dispositivos da RAPS, no intuito de agenciar sua consolidação abarcando a rede intersetorial.

 


 

Referências

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21.Sistema Único de Saúde.  Relatório Final da IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial, 27 de junho a 1 de julho de 2010. Brasília: Conselho Nacional de Saúde, 2010.

Recebido em  08/041/2022.

Aceito   em  03/15/2023.